Random City
Letícia Lampert [1]
Resumo: Este artigo é uma reflexão sobre o processo criativo por trás de Random City, um projeto fotográfico que venho desenvolvendo desde 2015. O trabalho se propõe como um ensaio sobre memória, identidade cultural e globalização a partir da paisagem urbana. Nele, o caminhar por diferentes cidades é o ato fundador de um jogo poético em constante expansão e, a fotografia, a principal forma de reflexão sobre as questões propostas.
Palavras-chave: cidade, fotografia, caminhar, globalização, memória
Abstract: This article is a reflection on the creative process behind Random City, a photographic project I have been developing since 2015. The work proposes an essay on memory, cultural identity and globalisation through the urban landscape. In this project, walking is the founding act of a poetic game in constant expansion and photography, the medium to discuss it.
key-words: city, photography, walking, globalisation, memory
[1] Artista visual, mestre em Poéticas Visuais pelo PPGAV-UFRGS e pesquisadora independente.
Se ao aterrissar em Trude eu não tivesse lido o nome da cidade num grande letreiro, pensaria ter chegado ao mesmo aeroporto de onde havia partido. (…) Pode partir quando quiser — disseram-me -, mas você chegará a uma outra Trude, igual ponto por ponto; o mundo é recoberto por uma única Trude que não tem começo nem fim, só muda o nome no aeroporto.
Italo Calvino, As Cidades Invisíveis
É dificil definir o ponto de partida de um projeto, o marco zero de uma ideia. Já me surpreendi, muitas vezes, ao encontrar sinais claros do que pareciam ideias recentes em arquivos e anotações de vários anos atrás. Parece que as ideias vão e vem e se misturam e se transformam e ficam adormecidas em algum lugar, maturando, até serem reativadas como se fossem uma inesperada epifania. Mas esta epifania nunca surge do nada, ela é construída vagarosamente, passo a passo. Projeto é trajeto, é fluxo, é percurso.
E assim é Random City, um projeto/percurso que não sei ao certo quando começou nem quando vai terminar. Um projeto que incorpora estas incertas camadas de tempo e de espaços que constituem as ideias. Uma pesquisa que existe num contínuo caminhar, num processo de percorrer cidades para fazer paisagens. Uma divagação visual que se faz a pé, numa deriva improvável que conecta Porto Alegre e Xangai, São Paulo e Nova York, Montevideo e Paris. Tantas cidades como se fossem uma só. E será que não são? Entre Starbucks e McDonalds, Ibis e Mercures, me vejo no mesmo lugar mesmo do outro lado do oceano. Belong anywhere, diz o slogan do AirBnb. Mas onde mesmo eu estou?
Difícil dizer. Penso ter chegado à Trude, de Calvino, ou seria à Nova Babilônia, de Constant? A cidade nômade, situacionista, inspirada nos ciganos e proposta no final dos anos 50, quem diria, mais parece a tradução conceitual da vida possível para quem vive através de aplicativos de deslocamento e hospedagem nos dias atuais.
E seguindo entre memórias entrecortadas, experiências e divagações, vou misturando fotografias dos mais variados lugares numa panorâmica que não quer nunca chegar ao fim. Ainda que a colagem seja evidente e assumida como estratégia de edição, é difícil definir fronteiras e nacionalidades de forma precisa. As combinações, às vezes cuidadosamente planejadas, às vezes aleatóreas, enfatizam as idiossincrasias de tantas cidades que passaram por crescimento acelerado e períodos de colonialismo que, mais tarde, tendem a reaparecer num auto-colonialismo tardio e voluntário, confirmado por pastiches arquitetônicos bastante inusitados.
Mas se falar de projeto como percurso pode parecer uma obviedade, uma redundância desnecessária, Random City quer levar esta redundância ao extremo da literalidade uma vez que é, ele mesmo, um processo aberto e em curso por definição. Embora trechos da série já tenham sido apresentados em diferentes escalas e suportes, de quadros a instalações, passando até por atividade coletiva em oficina, ele não tem um formato ou tamanho definido e vai se moldando conforme diferentes contextos. No fim, o perfil do Instagram, @city.random, talvez seja o suporte mais coerente para o projeto, uma vez que permite compartilhar este fluxo constante e interminável de paisagens que se interconectam em um trajeto imaginário que segue crescendo a cada dia que passa.
Se as cidades estão sempre mudando, se reconstruindo, por que congelá-las em imagens de um presente já passado? Melhor adicionar mais uma camada. E mais uma. E mais uma. E assim eu vou seguindo, nesta espécie de diário sem cronologia, que vai e volta ligando tempos, espaços e experiências. Minhas e de quem mais deixou suas marcas pelas cidades por onde eu passar. Juntos, seguimos. Só mais uma camada. Tão longe quanto os olhos puderem levar.














Referências
CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática poética. São Paulo: Editora G. Gili, 2013.